"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

26.1.06

um dia, um ladrão

Chega como quem vai pedir informação e levanta a blusa para que eu note o 38 no alforge improvisado. Diz "Vai andando normalmente, passa o que tiver." Um movimento brusco, um sinal de medo ou preconceito pode resultar num disparo. A partir do momento que obedeço deixo de ser vítima e me torno cumplice. E me torno porque ele é tão humano quanto eu: dorme, come, ama, chora, mija, goza, tem carne, cabelos, dentes, vai apodrecer quando morrer, nasceu nu e chorando, se aborrece, se entorpece, depois fica de cara. Enfim, somos humanos. Enquanto ele me leva para um canto escuro, tento mostrar-lhe que sou quase tão pobre quanto ele (proletário), que só tenho livros dentro da bolsa, que não trago dinheiro ou celular. Experimenta a blusa quente que comprei num brechó há pouco tempo e me devolve. Não curtiu a lã azul. Não leva nada, não me olha nos olhos e diz que é pra eu seguir em paz, que sou humilde. Aperto-lhe a mão e sigo entre a perplexidade e a surpresa, cheio de incertezas a respeito do peso das coisas, pensando sobre o mundo do qual fui repentinamente retirado (pelo susto do assalto) e para o qual irei logo logo (até desaparecermos no horizonte de um para o outro). Em breve ele se torna apenas memória de ladrão - como Genet e Hood são memórias de ladrões. Como a visão mais sincera do Deus deve ser: um furto de graça. texto . matheus só título (citação) e texto (alusão) . john ulhoa

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