"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

11.1.07

volver

Então finalmente chegou o dia em que ele ia voltar a ver um filme de seu diretor favorito. Havia muito que aguardava por uma chance de conferir a película inédita. Já tinha visto diversas vezes quase tudo que o espanhol tinha filmado - faltava apenas "Labirinto de Paixões" e os curtas-metragens underground do início da carreira. Na semana anterior convocou uma legião de amigos para acompanhá-lo à sessão. No dia e hora marcados, por um motivo ou por outro, ninguém compareceu. Tentou lamentar-se por estar sozinho mas não conseguiu. Na bilheteria, comprando a entrada inteira, confessou a si mesmo: gostava muito mais de ir ao cinema sozinho. Aliás, gostava muito mais de estar sozinho para entrar em contato com a arte. Porque gostava de sorvê-la em silêncio contemplativo, processá-la com cuidado extremamente meditativo (sem conclusões precipitadas), distorcê-la com seu lirismo peculiar e, depois, no caso de filmes de que gostava muito, escrever artesanalmente sobre a obra e publicar seu texto num post, num poste, num jornal... onde pudesse ser lido por conhecidos e desconhecidos. No início da sessão não houve trailers, apenas comerciais como na televisão. Havia pouca gente na sala de exibição, o que lhe possibilitava maior conforto - como, por exemplo, coçar-se, apoiar os dois braços nos respaldos do assento, quiçá acomodar os pés no encosto da cadeira da frente. A primeira cena: mulheres limpando os túmulos de seus maridos falecidos. Sabia sim que nesse filme Almodovar tinha matado seus homens - não sem antes gozar bastante com eles em "La Mala Educacion". O que não tinha sequer desconfiado, porém, era que a forma como o diretor encontrara para simbolizar essas mortes fosse tão concreta e explícita, a ponto de ser apresentada já na primeira cena, junto com o nome da produtora (El Deseo) e o título do filme - sem tradução no Brasil, ainda bem.
O filme lhe pareceu pouco sofisticado se comparado a "Fale com Ela". Assim como "La Mala Educacion" remetia à fase mais underground do diretor ("Entre Tinieblas", "La Lei del Deseo"); essa falta de sofisticação era um retorno à simplicidade de "A Flor do Meu Segredo". Cores menos gritantes do que em "Ata-me" ou "Tudo Sobre Minha Mãe", e a ameaça iminente de crimes enconbertos prestes serem descobertos. Crimes, obviamente, justificáveis. Quando Raimunda cantou para a filha um certo tango de Gardel que Irene lhe havia ensinado, brotaram lágrimas nos olhos maravilhados do rapaz. Não sentiu vergonha, pois uma senhora que tinha entrado no meio da sessão também fungava com um lenço no nariz.
Não previra o desfecho comovente e teria ficado bem chateado que, se houvesse companhia, alguém mais treinado em criminalística tivesse delatado a solução do mistério. Qualquer coisa que dissesse sobre o filme estragaria a surpresa de quem ainda não o tivesse visto. Seria difícil até mesmo fazer uma sinopse ou um texto poético - já que o lirismo do filme completava-se nele mesmo. Quem sabe um conto curto em que se incluísse como personagem e falasse do filme apenas vagamente?
Quando as luzes se acenderam, ficou ainda um tempo olhando os créditos. Quando acabaram, teve de ir. Retroceder ao mundo real foi como se tivesse sido teletransportado repentinamente de um universo de fantasia doce, absurda e violenta a outro universo de crua dureza de concreto. Os olhos ainda intimidados pela claridade de estar ao ar livre ardiam um pouco.
Ainda era dia - o crepúsculo.
Era Natal e as pessoas pareciam mais agitadas. Indo e vindo, indo e vindo. Como detestava o Natal! Quanta falsidade! Quanto cristianismo! Quanta mídia! Sentiu ânsias de vomitar, mas controlou-se. Melhor não pensar e ir tomar um ar no Parque Municipal.
Aos poucos foi se acostumando, aterrisando em sua vida, planejando as realizações de seus compromissos e projetos, que não eram poucos. Mas sem deixar de revolver as imagens que, ele sabia, tinham entrado há pouco em seu ser pelos olhos e se instalado em sua mente. De sua memória, essas imagens jamais se desvencilhariam.
texto . matheus só
película . volver, de pedro almodovar, espanha, 2006

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Olá!

Deixei meu blog abandonado por um tempo e, esta semana, acessei-o novamente e vi um comentário seu. Valeu pela visita!
Passei correndo aqui para agradecer e pretendo voltar com mais calma para ler os seus posts.
Abraço!

3:48 PM

 
Blogger ana f. said...

vermelho

9:27 PM

 

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