"Santas as visões, santas as alucinações, santos os milagres, santo o globo ocular, santo o abismo." (Allen Ginsberg)

30.12.10

Balada para Joana d'Arc




Meu desespero em melhorar o mundo é inversamente proporcional ao bem que consigo para mim. Nem falo de privilégios, mas de tranqüilidade mesmo – paz do espírito interior. Combatente bem valente não descansa nem quando dorme. A ponta da minha lança tá bem afiada – tem tinta. Sedenta por tempos menos obscuros, persisto sem cogitar uma parada. Ser retrô agora é ser de vanguarda. Nem sei se vou me salvar com isto. Nem quero saber. Nem é bem salvação o meu implícito propósito. Melhor nem saber o que vem por aí. Que no futuro provavelmente o ocaso me visitará. Santa não! Guerreira. Lotada das vertigens misteriosas e delirantes. Missão eu porto, não lamento: fulgurar meus flagelos como estandarte flamejante. Por justiça. Somente por justiça. Ao invés das costumeiras concessões desprezíveis, falhas, distorcidas e tardias.

Texto . Balada para Joana d’Arc, de matheus matheus
Imagem . O Martírio de Joana d’Arc, de Carl H. Dreyer

28.12.10

E Deus Criou a Mulher


Conhece um lugar onde as pessoas só querem dançar e rir? Que o mambo toma conta do corpo ensandecido e drena toda a tristeza, ainda que por um breve instante de tempo, para um não lugar onde esta não possa nos incomodar. Só dançar, com o diabo no corpo. Nada mais. Se deixar levar. Soltar os bichos. Embriagar-se de som. Descabelar-se com a boca entreaberta e os olhos entremeados pela luxúria. Pé no chão, mão no tambor, olhos na Bardot. Tiro ou tapa – tanto faz, vale nada. Vale tudo, vale mais meu soluço. Afinal, “nada sabem de amor os policiais”.

texto . matheus matheus com citação do filme
imagem . E Dio Creò la Donna, de Roger Vadim, França/Itália, 1957

23.12.10

Feliz Natal




Enquanto as crianças se divertiam com seus presentes recebidos, os adultos sentavam-se a mesa farta para cear. A última a tomar seu posto, à cabeceira, foi a sábia matriarca, de oitenta e oito anos. Com o ar cansado e sereno de quem sabe que já viveu mais do que viverá, pigarreou, fechou os olhos, colocou as palmas das mãos viradas para cima sobre a mesa e começou a fazer sua longa oração de Natal, que aumentava ainda mais a fome dos membros da família, mas que nenhum deles tinha coragem de interromper.
Mas, naquela noite, outra coisa a interromperia. Junto à oitava das doze badaladas do grande relógio de parede, a campainha soou. A governanta, que também estava sentada à mesa, pois já fazia parte da família, foi atender. Um minuto depois retornava:
- É um menino de rua. Pede comida. Posso preparar um prato com sobras pra ele...
- Nada de sobras – disse a matriarca, com ar decidido. – Faça com que ele entre e sente-se conosco à mesa.
- Mas mamãe... Como assim() É um... Um pivete! – Era a filha mais velha desconfiando de que a mãe estava ficando senil.
- Querida Nancy, percebo agora que de nada adiantou as centenas de vezes que lhe contei a história de uma família que recebia a visita de um mendigo que lhes pedia um pedaço de pão e que, após veemente recusa da mesma, se revelava o filho de Deus disfarçado em homem comum, da mesma forma que acontece desde a primeira vez. Deus está em mim, em todos desta mesa e também nos que estão fora dela. Deus está aonde houver vida. Vá buscá-lo! – Disse a generosa senhora à governanta, que não ousou desobedecer.
Então, o menino foi convidado pela matriarca a sentar-se à mesa, ao lado de seus filhos, netos, bisnetos e amigos, perplexos. Para ele, a deliciosa comida que lhe foi servida e aquele abrigo feliz de calor simbolizaram o primeiro Natal de verdade de sua existência. Mas para todo o resto do clã, incluindo as crianças e os criados, foi o menino quem simbolizou o renascimento do Cristo. Houve outros.

texto . Uma Lenda Contemporânea, de Matheus Matheus
imagem . Feliz Natal, de Selton Mello, Brasil, 2008

21.12.10

Os Famosos e Os Duendes da Morte



Pra saber como é a cara deles ao saber que estão num lugar em que não se pode mais voltar atrás. É tarde demais. Se se arrependem. Se pensam nos que ficarão. Se pensam nos que seguirão sem a companhia deles. Se pensam como estes seguirão. Depois dali não tem mais nada, baby blues. Dançar é meio de salvação, riso com lágrimas nos olhos – ê felicidade engarrafada e instantânea. Viver também é meio de salvação – para quem vive, pois quem morreu não pode mais.

Aquela canção do Bob Dylan cantada por boca feminina menos rouca. Borboletas bordadas no papel de seda delicadamente grudadas no céu do carro por longos alfinetes. Pele branca quadriculada. Espinhas no peito, espinhos no coração – universo umbigo. Impressão – é crua, de noite, de dia. Fuga pro banheiro só pra aliviar a tensão. Um brinde de gala, reveillon em junho: ele, ela e eu. Pra quem não pode morar lá, é sempre junho no sul.

Vontade de ir pra longe. Sair do cu do mundo em que se mora. É um lixo. É o que tem. Vontade de ir pra longe. Longe é o lugar onde se pode muito mais. Não tenho o menor saco para futebol. Nunca curti nem fiz o horário de Educação Física. Ah... O astro cheio de estrelas. Ah... Fumar bagulho na linha do trem. Ah... ataque de riso seguido de bodação. Nem há melhor sorte de esporte do que esta.

Há quem navegue em blogs e flogs sem a menor intenção de deixar um comentário. Logo, vezenquando sinto que publico para fantasminhas camaradas que curtem contemplar o mundo como o vejo à francesa. Fico agradecido. E vivo. Estar perto não é físico.

Texto . matheus matheus com citações de Otto, Dylan e Karnak
Imagem . Os Famosos e Os Duendes da Morte, de Esmir Filho, Brasil, 2010

17.12.10

Ser Ou Não Ser


Representar. Participar de cada cena cumprindo com o máximo impossível de competência o papel a que se foi designado. Ainda que pareça pequeno. Mais vale um grande ator num papel pequeno do que o inverso. Aliás, para um grande ator, nenhum papel é pequeno. Ele livra-se dos contratempos com a mesma rapidez e facilidade com que se livra de seus personagens.

Imagem . To be or not to be, de Ernst Lubitsch, EUA, 1942
texto . matheus matheus

15.12.10

Bola de Fogo




Perder a mania de anotar enquanto vivo. Viver primeiro e depois, na ressaca do tédio escasso, transcrever fidedigna e multicopiosamente feito eu fosse um vidro de caleidoscópio. A vida não é uma enciclopédia a que se possa consultar a todo momento ordenadamente. A vida explode, pânica ferida caótica, feito baterista de terno tocando. Ou baterista sem camisa() Cada um veste o que escolhe, o que acha melhor. Ou o que é preciso para a ocasião() Nada catalogar, que é dispensável. Viver é primeiro lugar.

Texto . matheus matheus
Imagem . Ball of Fire, de Howard Hawks, EUA, 1941

7.12.10

Asas do Desejo

"Quando criança era criança, andava balançando os braços. Desejava que o riacho fosse rio, que o rio fosse torrente e essa poça, o mar. Quando criança, era criança, não sabia que era criança. Tudo era cheio de vida e a vida era uma só. Não tinha opinião, não tinha hábitos, sentava-se de pernas cruzadas, saia correndo, tinha redemoinho no cabelo e não fazia pose para fotos." imagem & texto . Der Himmel ünder Berlin, de Wim Wenders, Alemanha, 1987